Medo e vergonha (dez.2007)
Atos de violência neonazista e gangues que ostentam símbolos como a suástica surgem em Israel, causam perplexidade generalizada e colocam em xeque a imigração indiscriminada amparada pela Lei do Retorno. Por Gabriel Toueg, de Tel Aviv.
Conta-se que o pai do Estado de Israel, David Ben Gurion, teria dito que sonhava ver o país dos judeus como qualquer outra nação no mundo. Se ele pudesse reformular a frase hoje, talvez acrescentasse que, diferente de qualquer outra nação no mundo, Israel não seria, em seus sonhos, palco para atividades anti-semitas. Tarde demais. O Estado judeu tem presenciado mais e mais casos de anti-semitismo, que têm passado de teóricas suásticas tatuadas e frases de efeito a ações violentas contra cidadãos. E se Israel é um país como qualquer outro, como Ben Gurion sonhava, deveria pelo menos ter uma lei clara e bem definida para autuar os neonazistas israelenses — em sua maioria oriundos de países soviéticos, e imigrados por força da contraditória Lei do Retorno, um dos fundamentos da legislação israelense que assegura a qualquer pessoa que possa comprovar ter ao menos um avô judeu o direito de adquirir a cidadania do país.
A prisão de um bando de jovens neonazistas em Petach Tikva, cidade pacata localizada a menos de 10 quilômetros de Tel Aviv, acendeu a discussão em torno do tema — e tem levado as autoridades a finalmente considerar com maior seriedade o fato de que a ideologia nazista não só não morreu, como se mantém firme e vigorosa também dentro das fronteiras do Estado judeu. Os oito jovens detidos em setembro [de 2007], membros do que ficou conhecido como “a gangue de Petach Tikva”, tiveram envolvimento em ataques a trabalhadores estrangeiros, a sem-teto e a judeus ortodoxos. Logo após a prisão, a imprensa televisiva israelense veiculou imagens de jovens mascarados, chutando e socando pessoas inofensivas nas ruas da pacata cidade. Já são inúmeros os casos de pichações anti-semitas encontradas em paredes em diversas cidades, bem como ataques a sinagogas e cemitérios.
Tudo isso no país dos judeus, o mesmo em que chamar alguém de “nazista” é insulto gravíssimo, quase sem igual; o mesmo país no qual críticas duras foram feitas quando o filósofo Yeshayahu Leibowitz classificou de “judeus nazistas” os soldados israelenses que servem nos territórios palestinos; e o mesmo país que assistiu, durante o plano de desocupação da Faixa de Gaza, em 2005, a colonos judeus caminhando com estrelas de David amarelas, em lembrança ao símbolo que os judeus eram obrigados a usar durante a 2ª Guerra Mundial — atos que provocaram revolta na sociedade israelense.
Diferente do que muitos podem pensar, o problema dos neonazistas em Israel não é isolado e pode estar se transformando numa tendência, também ao contrário do que o ministro de Segurança Interna, Avi Dichter, indicou em carta endereçada, em agosto [de 2007] à presidente do Parlamento israelense, Dália Itzik, com cópia para a deputada Colette Avital, que em 2005 presidiu na Knesset o Comitê de Imigração e Absorção. No documento, Dichter, que encabeçou o Shabak (serviço de segurança interno de Israel), afirma que “o neonazismo em Israel não é importante, a polícia pesquisou e apurou que nada tem acontecido, não se trata de uma tendência, não é sério”.
A realidade é bem outra. De acordo com Zalman Gilichinski, judeu ortodoxo que emigrou em 1989 da Moldávia, existem diversas centenas de neonazistas em Israel. Ele vai adiante: “É difícil pensar em uma só cidade com população relativamente grande de imigrantes russos não judeus na qual não haja atividade neonazista”. Ele se refere a não judeus haláchicos, isto é, àqueles que não seriam considerados judeus segundo as leis religiosas, que estabelecem que apenas o filho de uma mulher judia pode ser considerado judeu, mas que chegaram a Israel beneficiados pela Lei do Retorno. Em sua opinião, os neonazistas israelenses são retrato de uma antiga cultura anti-semita russa — de acordo com dados do Ministério do Interior em Moscou, há atualmente cerca de 70 mil neonazistas no país.
Uma pesquisa realizada no ano passado pela Academia de Ciências da Rússia aponta para um quadro assustador. De acordo com o levantamento, 35 por cento dos russos expressaram sentimentos não simpáticos aos judeus. A maioria dos participantes da pesquisa disse que não gostaria de ver um judeu como presidente do país, e 20 por cento acham boa idéia que judeus sejam impedidos completamente de ocupar posições no governo.
Já são inúmeros os casos de pichações anti-semitas encontrados em paredes de diversas cidades, bem como ataques a sinagogas e cemitérios.
Gilichinski, de 42 anos, tem se dedicado desde o ano 2000 a caçar neonazistas em Israel. Desde então, ele administra a Damir, entidade cuja sede é um pequeno escritório no bairro ultra-ortodoxo de Sanhedria, em Jerusalém, visitado pela reportagem. A Damir dá assistência e informação a vítimas de anti-semitismo. “Temos recebido cerca de 250 chamadas por ano, relacionadas com atividade neonazista, e um terço delas tem a ver com violência, afirma, no hebraico marcado pelo pesado sotaque de seu idioma materno, o russo de Kishinev, cidade que foi palco de um sangrento pogrom em 1903. Gilichinski cresceu em uma atmosfera anti-semita. “Fui agredido, humilhado. Eu me lembro de ouvir, quando era criança, os outros dizendo: ‘Não brinque com ele, ele é judeu’.” Não por acaso ele criou a Damir.
De fato, foi Gilichinski quem deu à polícia israelense as informações que levaram à prisão da gangue de Petach Tikva. A entidade monitorou as atividades do grupo neonazista durante quatro anos e colecionou fotos, mensagens de internet e vídeos — entre os quais aquele que a televisão israelense colocou no ar depois da detenção, e outros em que os neonaziatas agridem pessoas na rua, com violência fria e assustadora. Apesar de ter dado resultado neste caso específico, o caçador de neonazistas reclama da falta de ação e atenção por parte da Polícia e mesmo do Exército.
Em 2005, Ilya Zolotov, um soldado russo-israelense de Haifa, foi acusado de ser responsável pela criação de um site chamado “Unidade Branca Israelense”, que nega o Holocausto e incita à violência contra judeus. Apesar de ter sido julgado, ele foi sentenciado apenas a prestar 200 horas de serviços comunitários e a tomar parte na Marcha da Vida, na Polônia. Nenhum punição mais séria dentro do Exército foi imposta ao soldado, que apareceu na capa de vários jornais israelenses, à época, exibindo uma suástica vermelha tatuada sobre uma estrela de David no braço.
O grande debate que surgiu na sociedade israelense depois da prisão do bando de Petach Tikva girava justamente em torno da punição a casos de anti-semitismo. O país que caçou criminosos nazistas fora de suas fronteiras, que teve êxito em capturar Adolf Eichmann em 1960 para julgá-lo em território israelense, tem falhado no momento de dar uma resposta às ameaças anti-semitas que existem dentro do Estado. Israel não tem uma lei bem definida acerca da posse ou venda de parafernália nazista — algo que no Brasil, por exemplo, é considerado crime inafiançável.
A polícia israelense sequer sabe como reagir a ocorrências de violência anti-semita. De acordo com o porta-voz da Polícia, Mickey Rosenfeld, cada caso é tratado isoladamente. Nos últimos meses, “algumas prisões” foram feitas, segundo Rosenfeld, em Haifa e em Eilat, relacionadas a casos de vandalismo anti-semita, mas não envolvendo violência. “Eles sequer fazem parte de grupos organizados”, diz, em referência ao grupo detido em Petach Tikva. O porta-voz nega a acusação de Gilichinski de que a polícia demorou a entrar em ação no caso. “A prisão foi resultado de uma longa investigação, com agentes infiltrados”, diz.
A primeira reação do público à prisão dos jovens, em setembro, foi de ceticismo e dúvida: a cidadania concedida a eles pela Lei do Retorno pode ser revogada? Embora a resposta do senso comum seja um óbvio “sim”, as autoridades se deparam com um embrulho burocrático gerado pela ausência de legislação para tratar casos internos de anti-semitismo. Como explicado, a lei atual assegura o direito de imigrar a Israel a qualquer pessoa que tenha pelo menos um dos quatro avós judeu — ou que consiga provar tal fato.
Gilichinski explica que grande parte da população que fala russo em Israel não tem qualquer relação com o judaísmo. “Eles têm uma forte bagagem anti-semita e a internet facilita o contato com grupos neonazistas dos países de onde vieram. Além disso, eles viajam por longos períodos”. O caçador de nazistas se refere ao sem-fim de sites na rede mundial e aos chats dos seguidores de Hitler. “O nazismo é atraente para esses jovens”, diz. A estimativa de Gilichinski é chocante — do cerca de 1 milhão de russos atualmente vivendo em Israel, 300 mil não são judeus. E ele culpa a política da Agência Judaica de trazer, a qualquer custo, imigrantes para o país.
No fim de outubro, o ministro do Interior, Meir Sheetrit, acendeu o pavio de um tema explosivo ao dizer que Israel não deve mais conceder cidadania automática a judeus da Diáspora. Num encontro do Conselho Diretor da Agência Judaica, o ministro disse que, antes, quer “ver se o imigrante não é um criminoso, se ele está aprendendo hebraico, e que deverá ficar em Israel durante cinco anos para ser apto a receber a cidadania”. Embora a motivação de Sheetrit não tenha sido o anti-semitismo galopante, a declaração aponta para a necessidade de reformulação da Lei do Retorno, assunto considerado tabu nos círculos políticos e na Agência Judaica. Sheetrit foi duramente criticado, até mesmo dentro do governo, pelo também ministro Yaakov Edri, da pasta de Imigração e Absorção.
A Agência Judaica, como era de se esperar, se opôs às declarações do ministro. Num comunicado distribuído a jornalistas após as falas de Sheetrit, a entidade afirmou que “apóia a continuação da existência da Lei do Retorno, que tem sido a alma do Estado judeu desde a sua criação”. Em entrevista exclusiva à Revista 18 diretamente de Nova York, o chefe do Departamento de Educação da Agência Judaica, Amós Hermon, se juntou ao coro e criticou Sheetrit. Segundo ele, é dever do governo e da própria entidade educar e facilitar a absorção dos novos imigrantes. Mas reconhece: “Não estamos fazendo o suficiente, precisamos investir muito mais dinheiro e recursos”.
Com relação aos jovens neonazistas, Hermon disse que o país deve “puni-los e mandá-los de volta para o país deles”. Mas ele acredita que, embora tenha raízes na educação, trata-se de um fenômeno isolado, e de atos perpretados por uma pequena minoria.
Apesar do discurso, na opinião de Gilichinski falta vontade política para colocar em prática legislação que já existe em Israel. Uma cláusula na Lei de Negação do Holocausto, de 1986, prevê punição a quem propagar a idéia da solução final e a ideologia nazista. “A política de Israel tem sido a de varrer para debaixo do tapete os casos de violência neonazista”, diz, enquanto tira do pescoço uma corrente com um pen drive em que carrega os vídeos dos jovens de Petach Tikva em ação.
Ilya Zolotov, um soldado russo-israelense, foi acusado de ser responsável pela criação de um site chamado ‘Unidade Branca Israelense’, que nega o Holocausto e incita à violência contra judeus
Nem mesmo os políticos russos, que deveriam ter especial interesse no assunto, lhe dão a atenção merecida. Natan Sharansky, que lidera um fórum global contra o anti-semitismo, ignorou diversas cartas que Gilichinski disse ter enviado em busca de apoio. “Ele não me deixou distribuir material sobre a Damir num evento do fórum”, acusa o judeu ortodoxo. O motivo, diz, é eleitoral — o político não quer problemas com seu público votante. O ministro não respondeu a solicitações de entrevistas enviadas pela Revista 18.
Enquanto exibe os filmes já sem se emocionar com a violência, Gilichinski sugere o que deve ser feito — “já”. “É preciso escolher melhor quem vem, submeter os candidatos a exames de conhecimento geral sobre judaísmo”, aconselha. Ele vai além: “A população precisa saber como reagir”. Mas, quando questionado como ele mesmo reagiria se testemunhasse uma agressão anti-semita, não sabe responder. E quando pergunto se não tem medo de sofrer represálias por conta do trabalho da Damir, só lhe ocorre uma resposta: “Tenho vergonha de ter medo”.
*Este texto foi publicado originalmente na edição 22 (dez/2007-jan/fev 2008) da revista DEZOITO, uma publicação trimestral, já descontinuada, do Centro de Cultura Judaica, em São Paulo. A grafia do texto original, anterior à reforma ortográfica do português, foi mantida (palavras cuja grafia foi alterada pela reforma de 2009 estão grafadas em itálico). As imagens foram recuperadas da versão impressa da revista, por isso não estão com qualidade máxima.