A linguagem absorvida (abr.19)
Manter o idioma original de pais imigrantes, aprender o de uma nova pátria ou atuar como intérprete para ajudar os familiares a assimilar a cultura de um novo país são alguns exemplos de como a língua pode influenciar na entrada e saída de pessoas em novas sociedades
POR GABRIEL TOUEG ILUSTRAÇÕES VERIDIANA SCARPELLI
Texto publicado originalmente na edição 78 da Revista da Cultura
Nascido em 1905 na Bulgária, descendente de judeus ibéricos, o prêmio Nobel de 1981, Elias Canetti, descreve, no livro A língua absolvida, parte de uma trilogia autobiográfica, sua relação com os idiomas durante a infância e a adolescência. Na obra, além dos acontecimentos daquele período, em parte anterior à Primeira Guerra Mundial e também no entreguerras, ele relata os livros que ganhava do pai, os 17 idiomas que o avô falava e o aprendizado, sob a rigidez materna, do alemão. Em um determinado trecho, ele menciona contos de lobisomens e vampiros que escutava na infância. “Eu os tenho presentes em todos os seus detalhes, mas não na língua em que os ouvi (…), o búlgaro. Conheço-os em alemão, e essa misteriosa tradução talvez seja o fato mais estranho de minha juventude que tenho para relatar, e já que o destino linguístico da maioria das crianças decorre diferentemente, talvez eu deva falar sobre isso.” Canetti o faz.
Antes, entretanto, ao apresentar a cidade em que nasceu, Ruschuk, atual Ruse, localizada em um ponto do rio Danúbio que marca a fronteira com Giurgiu, na Romênia, explica: “Se eu disser que fica na Bulgária, darei uma imagem incompleta dela, pois lá viviam pessoas das mais diferentes origens e, em um dia só, podiam-se ouvir sete ou oito idiomas”. Os pais do escritor falavam alemão entre si; com os filhos, parentes e amigos, o idioma utilizado era o ladino, “um castelhano antigo que jamais esqueci”; e, das meninas camponesas locais, ouvia os contos de lobisomens e vampiros em búlgaro, “mas, como jamais frequentei uma escola búlgara e abandonei Ruschuk com 6 anos, (…) esqueci (o idioma) completamente”.
A situação descrita por Canetti, sobrenome cuja grafia original é Cañete, cidade na província espanhola de Cuenca, de onde vieram seus antepassados, não é muito comum no Brasil. De acordo com o linguista Lynn Mario de Souza, graduado pela inglesa Reading University e professor na Universidade de São Paulo (USP), o idioma original de pais imigrantes tende a ser mantido apenas em situações em que há alguma espécie de ameaça. Um exemplo é o dos turcos na Alemanha: “Como são marginalizados, eles mantêm o idioma mesmo após três gerações no país, e mesmo falando alemão fluentemente”. O turco é utilizado por eles na vida comunitária e religiosa.
O exemplo pode ser estendido aos imigrantes do Sri Lanka, do Paquistão e da Índia na Inglaterra, onde também mantêm seu idioma e sotaque originais como forma de defesa diante do preconceito que sofrem. Lynn explica que as gerações nascidas na Inglaterra procuram falar inglês com sotaques regionais, de forma a não serem marcados como imigrantes. O mesmo ocorre na África do Sul, que, segundo o lingüista, tem um forte racismo contra oriundos de países como Nigéria, Quênia e Zâmbia. “São discriminados pelo sotaque que têm no inglês, mas essa rejeição não ocorre contra europeus brancos, ainda que eles tenham o mesmo nível de formação.”
COMO ASSIMILAR?
No Brasil, em contraposição, “por ser um país de assimilação”, segundo Lynn, poucos conservam o idioma dos pais imigrantes. “A exceção pode estar entre coreanos e bolivianos”, afirma. Segundo ele, a razão está clara: “Nesses casos, muitas crianças mantêm o idioma original para atuar como intérpretes para os pais, uma vez que eles têm difícil assimilação à sociedade”. O motivo, de acordo com o linguista, está não apenas na dificuldade que os pais têm de aprender o português e de expressar-se no novo idioma sem o sotaque marcante que carregam, mas na tipificação que sofrem em função de sua aparência, igualmente característica em cada um dos casos. “No Brasil, sufocam-se os idiomas de forma cordial”, diz.
O geógrafo Carlos Alberto Póvoa, graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do livro A territorialização dos judeus na cidade de São Paulo, diz que a necessidade de “ser parte” dos migrantes transnacionais os leva a gerar uma “nacionalidade” por meio de uma identidade individual. “Quando está no coletivo, insere-se no contexto”, diz. Póvoa explica que o idioma é “a forma maior de integração entre imigrantes e nativos”. Segundo ele, as assimilações culturais baseiam-se na intercomunicação entre as diversidades, tendo como base a língua nativa.
“A diversidade é a base de qualquer processo natural”, afirma o linguista Lynn. “Artificial é o processo da aparente homogeneidade.” Ele diz ainda que, em qualquer circunstância, o repertório linguístico — mais que o idioma em si — determina quem o indivíduo é, somando-se fatores como o contexto cultural, o nível de domínio de cada idioma, incluindo o vocabulário “formal”, as gírias e as expressões, o sotaque regional e até mesmo a linguagem corporal e a gesticulação adotadas — e varia mesmo entre pessoas que falam um mesmo idioma.
EXCLUÍDA
Nascida em Chiclayo, quarta maior cidade do Peru, situada a quase 800 km da capital, Lima, Katherine Changanaquí Rivas vive há um ano no Brasil e estuda jornalismo em uma faculdade localizada próxima de Campinas, no interior paulista. Ainda com forte sotaque do espanhol, mesmo tendo conseguido melhorar a escrita no novo idioma, ela diz ter sido “constantemente excluída” de atividades que requerem um português “limpo”. As limitações, segundo Katherine, “exercem um papel importante no meu desenvolvimento”. “Estar cheia de ideias na cabeça e não poder expressá-las é como sentir-se muda ou analfabeta”, afirma. Ela diz querer preservar o espanhol se tiver filhos no Brasil. “Os idiomas abrem portas e oportunidades interessantes.”
Na conversa com o repórter, em espanhol, a estudante deixou escapar diversas expressões do português. “Considero que o português ‘estragou’ meu espanhol”, comenta, brincando. Segundo ela, o idioma tornou-se “mais técnico”. Ela diz que frequentemente mistura as palavras, tanto ao falar a sua língua genuína como ao usar o português. “Uso muitas palavras do português em espanhol. Quando falo meu idioma materno, sinto-me estranha, como se ele tivesse se tornado outra língua que estou aprendendo”, conta. Segundo a estudante, em diversos momentos, ela evitava o espanhol “por estar obcecada pelo aprendizado do português”. E garante: deixou de ler a imprensa peruana. “Tento adaptar-me ao Brasil e procuro, para isso, ler os jornais daqui.”
A experiência de Katherine é cada vez mais incomum em um contexto de globalização. “As novas tecnologias militam contra o conceito de nações”, explica Lynn. Com a internet e o barateamento de serviços telefônicos, o imigrante, não importa onde esteja, mantém contato com a sua origem. “Antes, a língua se perdia, porque não havia qualquer ligação com o país de origem.” De fato, a estudante confirma que, na “obsessão” de aprender português, perdeu “por algum tempo” os laços com o Peru. “Retomei-os recentemente, a cultura peruana me faz sentir orgulhosa de ser diferente. Vir para o Brasil me permitiu identificar características do meu país que antes não notava.”
CONFLITOS DE IDENTIDADE
A exemplo do Nobel Canetti, Lynn, nascido em Goa, antiga colônia portuguesa na Índia, também teve uma infância plurilíngue. “Meus pais falavam francês entre si, meu pai usava o português com os filhos e minha mãe, o inglês; na rua, o idioma era árabe (mais tarde, a família se mudou para o Iêmen, onde Lynn foi alfabetizado em uma escola corânica não muçulmana); em determinado ponto, eu e meus irmãos nos correspondíamos em textos em inglês transliterados em árabe, de forma que ninguém os compreendesse”, conta ele. Essa profusão de idiomas, segundo o especialista, provocava muitas vezes conflitos de identidade. “A verdade é que somos todos esquizofrênicos linguísticos, a única diferença é que, ao contrário dos que sofrem de esquizofrenia patológica, sabemos em cada contexto a identidade que temos”, enfatiza.
Os idiomas não precisam ser aprendidos apenas em processos de migração, em que há forçosamente a necessidade de se integrar — além de um ativo pessoal e nacional, o idioma é também um ativo profissional. O jornalista britânico Richard Fidler, repórter de esportes do jornal Shefield Star, escolheu estudar português na Inglaterra porque virá ao Brasil cobrir a Copa do Mundo dentro de alguns meses. “Acredito que é uma excelente forma de conhecer melhor o país e de me ajudar a encontrar histórias diferentes”, diz. “Isso me permitirá falar diretamente com as pessoas. Acho que elas apreciam quando alguém se esforça para falar o idioma delas.”
Em uma entrevista concedida ao jornal espanhol ABC, o escritor Juan Marsé, nascido em Barcelona, responde sobre uma obra que, segundo ele, é “apenas uma brincadeira”. O título, Sentiments i centimets, pode ser traduzido do catalão como “Sentimentos e centímetros”. Em sua resposta, Marsé foi contundente: “O idioma da narrativa não seria problema algum, porque, como se sabe bem, embora os nacionalistas não o queiram entender, a verdadeira pátria do escritor não é a língua, mas a linguagem”.